Este pequeno conto foi publicado pela revista DIF na sua edição de Maio 2008. Achei que justificava um arquivo, digamos, mais universal.
Parte I
- Cortaste o bigode?– reparou Fulano.
- Já estava na altura. – comentou distraidamente Sicrano, enquanto tentava aquecer as luvas de couro com o bafo quente. Era meio dia de Abril e continuava a fazer frio. Mais uma vez, o Inverno invadia a Primavera e, em vez de chuva, previam mesmo neve para o mês das águas mil. Era como se o Inverno tivesse pedido asilo político.
- Há moira na costa? – inquiriu Fulano.
- Sim. – constatou Sicrano, que parecia tremer. Era nervoso miudinho.
- Alguém que eu conheça?
- A tua mulher. Tens estado com ela ultimamente?
Fulano não estava com Alzira há uns bons dias e algumas noites óptimas também. Passara-as em “viagem de negócios”, na cama de Rosália, mulher de Beltrano. Por falar nisso, Beltrano chegava mais uma vez atrasado. Trinta e sete anos antes, fora ele o mais tardio dos três gémeos a nascer, isto em finais de Maio e já com o Verão à porta. Sim, os três gémeos eram do signo de Gémeos, mas só e apenas isso. Por coincidência diabólica não partilhavam aniversário ou cosmos, tinham nascido em três dias muito diferentes do signo. Fulano e Sicrano com cinco minutos de diferença, separados pelo bater da meia-noite do dia previsto para o parto. Beltrano mais de 24 horas depois, devido a “complicações respiratórias da parturiente”, a mãe dos meninos. O terceiro gémeo foi anunciado como nado-morto mas depois, subitamente, renasceu. Um milagre, disseram os avós. Os irmãos, a brincar, chamaram sempre Beltrano de “atrasado”. E hoje ele seria novamente o último a chegar ao encontro semanal da Avenida de Roma.
- Andas a comer a minha mulher? – perguntou Fulano.
- “Comer” não será talvez a palavra adequada... – defendia-se Sicrano. Sempre fora o filho mais equilibrado e sensível, o fulcro entre os irmãos e seus temperamentos.
- Então o que andas a fazer adequadamente com a minha mulher?
- Talvez o mesmo que fazes com a Rosália.
- Eu ando a comer a Rosália! – salientou Fulano com veemência e alguma espuma na boca. – Algo que o nosso irmãozinho mais novo parece não saber fazer a tempo e horas.
- Por falar em tempo e horas, olha quem aí vem.
Como sempre, Beltrano vinha aos saltinhos pela calçada, parando em todas as estações, para ver as montras do comércio ou as manchetes dos jornais. Se não era o “atrasadinho”, disfarçava bem e sem má-fé. O facto de dar aulas no Instituto Superior Técnico servia-lhe de camuflagem, não de máscara. Lá toda a gente era “tontinha”. Mas Beltrano sempre fora o mais transparente dos irmãos. Gostava de mulheres como de matemática, com inocência, minúcia e uma notável atenção pelo detalhe. Por assim ser, descobriu o ponto G das namoradas antes dos irmãos e das próprias namoradas.
- Já toparam a fauna? – perguntou Beltrano. – São cada vez mais novas as miúdas.
- É do festival de cinema. – salientou Sicrano. – Sorriem demais para o meu gosto. Parece casting.
- Não te chegam as tuas alunas, porra? – apontou Fulano.
- Quais alunas? No Técnico é só engenheiros e sapatonas. Não há cu. – riu-se Beltrano.
- Sabes que o teu irmão anda a comer a minha mulher? – aproveitou Fulano.
- Andas a comer a Alzira? – gritou Beltrano antes de dar um calduço de glória no prevaricador.
- Adequadamente! – acentuou Fulano. – Se calhar quer trocar novamente de mulher.
- Não pode ser! – esclareceu Beltrano. – Depois acusam-nos de sermos sexistas, de tratarmos mal as mulheres... – sublinhando as últimas palavras com alguma doçura, como se falasse para uma criança.
- Estou apaixonado pela Alzira. – informou Sicrano aos dois irmãos, que não o ouviram.
- Por falar em maltratar, Beltrano, a Rosália está farta de se queixar que nunca chegas a horas do chá... – disse Fulano, enquanto espreitava para dentro do restaurante. A ironia e tom de voz fizeram embaciar o vidro – Acho que a nossa mesa está pronta.
- Será que têm pastéis de massa tenra? – perguntou Beltrano.
- Topa a empregada. – reparou Fulano. – Isto também faz parte do festival de cinema?
Entraram, deixando Sicrano para trás sozinho na rua com o seu coração quente destroçado.
Sicrano, o sensível, era um choramingas, mas a sua lamechice funcionava com as mulheres, que encontravam nele tudo aquilo que supostamente faltaria ao homem comum. Sicrano não era comum, mas quantas mulheres estariam preparadas para o incomum, para uma vida ascética e contemplativa, como ele sempre prometia? “Não somos deste mundo” era uma das suas frases de engate nas primeiras 48 horas da relação. Sicrano não pertencia a ninguém e não desejava apropriar-se de quem quer que fosse. Mas, para mal dos seus pecados, apaixonava-se bruscamente. E não há amor louco sem arrogância de propriedade ou a consequente suspeita de traição. Quando não era ele o ciumento, seriam sempre elas, era indiferente. Sicrano tivera muitas namoradas mas poucas relações duradoiras. Cada amor era como o primeiro e seria decerto o último, porque “Amo-te. Vamos viver juntos para sempre?” era outra das frases-feitas que ele utilizava antes de elas sequer pensarem no pequeno-almoço do dia seguinte. Passado uns dias, Sicrano maçava-se com a relação e chateava-as até elas se fartarem dele. Mais do que uma patologia de amor, era um padrão de afastamento e repulsa que deixava o apaixonado com azia durante três dias.
- Vens comer pastéis de massa tenra ou vais ficar aí ao frio a choramingar? - Beltrano voltou atrás. – O teu irmão acabou de ligar para a mulher a contar-lhe o teu segredo. Sabes o que ela disse?
- Diz.
- Quando chega a Primavera parece que o teu coração fica com o cio, pá.
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