Aproveitando a inesperada pontualidade que é a consagração do Dia Europeu sem Carros, recupero três parágrafos de um texto que publiquei há três anos no Jornal METRO. De 2005 para hoje pouco ou nada mudou, excepto talvez a quantidade de CO2 emitido diariamente dos nossos paquidermes motorizados para a Avenida da Liberdade.
"O Dia Europeu Sem Carros significa que a Europa fica sem carros por um dia e o trânsito em Portugal fica como se todos os carros da Europa estivessem em Portugal no mesmo dia e à mesma hora (ou seja, entre as nove e dez da manhã duma segunda feira à entrada da Segunda Circular ou saída Campo Alegre na VCI). Portanto, como acontece todos os dias e todos os anos, a primeira coisa que fiz quando saí de casa no Dia Europeu Sem Carros foi pegar no meu automóvel e avançar lépido para estrada.
Eu gosto muito de conduzir. O facto de conduzir cerca de 40 quilómetros por dia (ida e volta do trabalho) significa que muito do prazer se banaliza e automatiza. O carro não se torna a extensão freudiana das minhas frustrações, bem pelo contrário: acabo por ser eu a extensão tecnológica do automóvel, e é ele que me conduz a mim (a única coisa que depende de mim será a escolha da música no auto-rádio, a cor do colete reflector e o vernáculo das ofensas a declamar ao energúmeno que subitamente entrou pela direita). Ao contrário de mim, no entanto, acho que os portugueses não gostam muito de conduzir – eles gostam é de ultrapassar. Preferivelmente de ultrapassar outros portugueses.
Ontem, quando saí de casa no meu automóvel, encontrei um rafeiro distante parado numa passadeira de peões. O pobre do animal não sabia o que fazer do Dia Europeu Sem Carros – se aproveitar para assinar os pneus dos automóveis da vizinhança com o seu chichi ou meter-se à estrada com os outros donos de rafeiros lisboetas. Deixei-o atrelado à sua abstracção e fui ter com os outros animais – aqueles que habitualmente me reconhecem na estrada e condignamente trato abaixo de cão".
(Crónica do Metro de 22 Setembro 2005)
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