Subitamente, na Primavera passada
Há vinte anos, quando ainda era estudante universitário, e o Bloco de Leste se mantinha intacto, uma das perguntas que os meus professores de Relações Internacionais insistiam em colocar às vítimas dos seus exames orais era: “O que é um cordão sanitário?”. Depois, e um pouco mais afastada na escala semântica de risco, aparecia: “E o que é um estado-tampão?”. Confesso que nunca chumbei a um exame de Medicina, perdão, de Relações Internacionais apenas por hesitar numa resposta à sugestão clínica dos mestres. Mas acredito que, nestas indefinições sanitárias, terei demorado um pouco mais a engolir as versões assépticas, para não dizer esquemáticas, que os doutores nos impingiam sobre a diplomacia internacional. Entretanto, em 1989, o muro de Berlim foi abaixo, o conflito Leste-Oeste deixou de fazer sentido, e nunca mais tive de ouvir a doutrina do “cordão sanitário” ou do “estado tampão” saída de luminárias como Vasco Rato, Durão Barroso ou Nuno Rogeiro. Nunca mais, até à última Primavera, quando a Rússia ganhou o Eurofestival da Canção.
Quando no passado mês de Maio a Rússia ganhou o Eurofestival da Canção, em Belgrado, na Sérvia (ex-Bloco de Leste), a primeira reacção que tive foi: “Espero que a RTP agora convide o Nuno Rogeiro para comentar o sucedido”. Tratou-se de uma vitória política? Eu diria mais: foi uma manobra concertada por loiras platinadas com belos pares de ogivas. E uma estratégia arrasadora levada a cabo pelas antigas alianças soviéticas, os actuais estados-tampão da Rússia: Arménia, Ucrânia, Geórgia, Azerbeijão, Bielorússia e por aí fora. De dia, eles fingem andar à porrada na Tchechénia e na Abkházia. À noite, funcionam como fosso de defesa do antigo Império, o elo mais forte dos valores culturais pimba. Na zdrovie!
Em vinte anos, a Europa deu uma volta sobre si própria e ficou na mesma lástima. Como uma ligeira diferença: o Eurofestival deslocou-se para Leste e ganhou pronúncia (o vencedor russo cantou num inglês macarrónico). A humilhação ocidental não tem precedentes. Basta ver a classificação do festival: dos dez primeiros, seis foram antigos “países soviéticos”, a somar ao conhecido trio da deriva continental, a Grécia, a Turquia e Israel. Excepção ocidental: a Noruega. E topem alguns dos últimos classificados: Reino Unido (vencedor de 5 festivais de outrora), Alemanha, Suécia (dos Abba) e França, que concorria com um sensacional tema de Sebastian Téllier, produzido pelos Daft Punk. A Bélgica, a Irlanda e a Itália nem chegaram à fase final. Vânia Fernandes, de Portugal, concorrente nº 13, ficou na 13ª posição. Foi uma sorte. Recebemos dez pontos de Andorra e da Suiça, e oito da França. Ou seja, votos dos emigrantes. Curiosamente, demos 12 pontos à Ucrânia, que ficou em 2º lugar. Das duas uma: ou a comunidade ucraniana em Portugal votou em peso. Ou o sonho de Portugal é um dia ser tampão da Rússia. Ao estado a que isto chegou.
Decomposição composta
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[image: Ana Fonseca, Paulo Duarte, «Corpo de homem encontrado na Praia da
Aguda em Vila Nova de Gaia», Correio da Manhã, 18/XII/24.]
Ana Isabel Fonseca, P...
Há 3 horas
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