sexta-feira, 27 de março de 2009

Os últimos 20 anos


Esta semana, Mourinho veio a Portugal receber o honoris causa pela Faculdade de Motricidade Humana. Imediatamente surgiram uns peludos a querer desviar as atenções mediáticas do special one, mencionando a injustiça que foi antes de Mourinho não terem sido destacados Jesualdo Ferreira ou Carlos Queiroz.

Admitindo que Mourinho tenha sido a melhor exportação de Portugal para o estrangeiro dos últimos 20 anos (no seu caso, a motricidade é mesmo uma faculdade), parece-me que a nossa melhor produção interna continua a ser a inveja. Essa vadia tem muito mais de 20 anos, e é personalidade gregária para competir com um belo Porto vintage.

Vinte anos são vinte anos, que é quase metade de 35, os anos da Revolução de Abril. Onde é que você estava? Desde 1974 até hoje já contabilizamos duas gerações incompetentes (sendo que a primeira culpabilizou a segunda), e pelo menos três ideologias aos “ésses”: os ressacados de esquerda, desde Abril até à morte de Sá Carneiro; a burguesia pato-bravo, em vigor desde a entrada na CEE até à queda de Cavaco ou fim da Expo 98; e a esquerda-caviar, a bronzear-se no poder desde que o PS de Guterres ganhou as eleições, no século passado. Quando exactamente? É fazer as contas.

E o que criou Portugal de sucesso nos últimos 20 anos? O que enche de orgulho os portugueses, para além de Mourinho e Cristiano Ronaldo? O que vai sobreviver para contar a história recente, e quem a vai contar? O Miguel Esteves Cardoso no jornal Público?

Costumo fazer esta pergunta aos amigos e familiares, para que sejam eles a preencher os espaços de memória criados pela minha amnésia auto-infligida. Alguém me disse: “Sumol. Mas apenas até decidirem criar o sabor laranja-chocolate”. Concedo, mas a Sumol já existe há mais de 20 anos, portanto não vale.

O que vale? O jornal Público, O Independente, a SIC Notícias, a Y Dreams, a TSF, a Subfilmes, a Expo 98, os Gift, a Via Verde, o Multibanco, o Herman José, o Paulo Branco, a Super Bock e a Sagres, a discoteca Lux, a Moda Lisboa, o Ricardo Araújo Pereira, a Radar. Não, a Catarina Furtado não.

Gostaria de incluir a FNAC, o Corte Inglés, a revista Time Out e o próprio jornal Metro, mas trata-se de franchise internacional, e apesar do sucesso na aplicação ao mercado e cultura locais, não contam para este escrutínio.

Quem conta? O Saramago, a Mariza, a Paula Rego e o Manoel de Oliveira são grandes embaixadores internacionais lá fora. Mas, para muitos dos portugueses, eles falam outra língua, e por isso não “comunicam”. Quem comunica, o Abrunhosa, o Reininho, os Buraka? Eles representam apenas as “franjas” de mercado e estamos carecas de o saber.

No fim da história, sobra apenas Mourinho. Pelo génio, espírito e insolência, ele representa aquilo que este país gostaria de ser quando fosse grande: maior. Ou apenas “o maior”.

segunda-feira, 23 de março de 2009

O meu acordo hortográfico: precipitação

"Precipitação" é quando os pessimistas se precipitam a anunciar chuva para o fim de uma semana de sol. Claro que depois nunca chove.

sexta-feira, 20 de março de 2009

O Primeiro dia de Verão

Hoje, 20 de Março 2009, às 11h44, começa ou começou a Primavera. O primeiro dia da Primavera é para mim o primeiro dia de Verão. E o primeiro dia de Verão é naturalmente o primeiro dia do final do Verão. Porque depois do solstício de Verão, este ano às 06h46 do dia 21 de Junho, o sol “retomará” a sua rotina descendente em direcção ao hemisfério sul (de onde agora vem).

Para mim, só duas estações reinam – o Inverno e o Verão. A Primavera e o Outono são meros embaixadores, apenas representam a grandeza do que aí vem. As pessoas limitam-se a dizer que “agora os dias vão ser mais compridos”, como se esse oceano fosse o alibi que precisam para reduzir a sua responsabilidade diária ou esforço. “Deixa lá isso agora, pá, aproveita é o bom tempo!”.


A bênção do sol em nada extende o brilho aos nossos dias se continuarmos a ser incapazes de reflectir uns nos outros a luz que o sol distribui (à borla). É por isso que eu acho que o Verão é um teste à nossa generosidade. Quando falta, prometemos dar (se voltarmos a ter). Quando abunda o calor, quem sabe distribuir?

Hoje, 20 de Março, é o equinócio da Primavera, o momento solene e equidistante (ou seja, igual para os dois lados) em que o sol atravessa a linha do Equador e nos pergunta a nós, residentes no hemisfério norte: “Posso regressar? Prometem tratar-me bem?”.

Quantos de nós seremos capazes de prometer o que quer que seja? Em Portugal as eleições serão apenas depois do solstício de Outono, em Setembro. Nessa altura, não me surpreenderia ver alguns políticos de megafone pelas feiras vender a sua próxima legislatura. “Prometemos um sol equidistante e o casamento entre os homossexuais do mesmo sexo!”.

O desdém pela Primavera e o Verão não é exclusivo do hemisfério norte, apenas dos países mediterrâneos. Portugal, Espanha, Itália e Grécia tomam a Primavera e o Verão como garantidos, por isso é natural que fiquem decepcionados quando as estações não cumprem os seus mínimos. Dizemos: “O Verão já não é o que era!”. Mas depois a nossa reacção imediata é provocar incêndios. Ninguém pode dizer que a vingança se serve fria.

Mas será que um país de janelas pequenas e varandas transformadas em marquises merece ter Verão? Os nórdicos, mais inteligentes no culto do sol, celebram intensamente o 21 de Junho, a que chamam o “midsummer” – “o meio do Verão”. Portanto, quando nós começamos o Verão, já eles vão a meio. Isso significa que desperdiçámos metade dos seis meses de Verão a queixar-nos das chuvas de Abril. Quando damos por isso já o sol está de partida.

Uma amiga confessa-me: “Na Primavera, as pessoas ficam mais felizes sem que isso seja verdade”. Eu não gostava que as pessoas fossem obrigatoriamente mais felizes, mas preferia que tudo isto fosse verdade. Nem que eu tenha que decretar.

terça-feira, 17 de março de 2009

Será Coraline um filme de crianças para adultos?


É provável que a polémica Coraline (ver texto em baixo, Os Espectáculos) vá mais uma vez cair em saco rôto. Mas pelo menos a mensagem chegou aos principais envolvidos:

A Comissão de Classsificação de Espectáculos (CCE), que respondeu tardiamente ao mail que eu lhe tinha enviado uma semana antes (portanto tarde demais para ser considerada no meu artigo do jornal Metro).

A Lusomundo, que na própria sexta feira se prontificou a esclarecer algumas imprecisões no meu texto.

E até o próprio Nuno Markl, autor da adaptação do argumento de Neil Gaiman para a versão portuguesa (como se sabe, Coraline não teve direito a distribuição de versão original no nosso país). A única pessoa que não regiu foi o próprio Neil Gaiman, o que me parece uma tremenda falta de elegância.

Vamos por partes, como diz o talhante. Comecemos pela minha insurgência. Depois de ouvir histórias de pais de crianças de 3 e 4 anos indignados com o facto de os seus filhos terem pesadelos com o filme de cinema Coraline e a Porta Secreta, classificado pela CCE para maiores de 4 anos, lancei a dúvida à Comissão: “Será este filme realmente para crianças de 4 anos?”. Mais: “Uma vez classificado o filme, o “policiamento” nas salas de cinema é rigoroso?”.

António Xavier, presidente da CCE, escreveu-me: “No caso concreto do filme Coraline, a classificação de maiores de 4 anos resultou da votação unânime de quatro membros da CCE, na sua interpretação dos critérios em vigor (disponíveis em
www.cce.org.pt) e da ausência de qualquer recurso até à data de estreia. Posso informar V.Exª que é a CCE a entidade competente para decidir de reclamações ou recursos de decisões suas e, em segunda instância, o próprio Ministro da Cultura”.

“Posso também informar que, ultrapassadas que sejam algumas tramitações jurídicas indispensáveis, nomeadamente a notificação e resposta do distribuidor, o filme vai ser reanalizado pela subcomissão de recurso da CCE. Da decisão subsequente a essa reanálise será dado conhecimento a V.Exª”.

Ficou por responder à segunda parte da questão: que responsabilidades têm as salas de cinema? Já agora, quem representa as salas de cinema em Portugal?

Embora eu não atribua “culpas” dos erros de classificação e distribuição nacional ao argumentista Neil Gaiman, Nuno Markl escreveu: "Não concordo, caro Somsen, que se atribuam culpas ao argumento do Neil Gaiman. Maiores de 4 é capaz de ser uma má classificação (maiores de 6 já me pareceria aceitável), mas quando é servido tanto entretenimento terrível para crianças, atacar um "filme de terror" - no sentido mais mágico e poético da expressão - que as trata com inteligência e sensibilidade, parece-me que é atirar ao lado!".

Concordo com a ideia de Markl de que o “entretenimento terrível” é servido indiscriminadamente aos espectacores juniores. A responsabilidade passa para os pais, que olham para a CCE como referência ou diapasão. Erro deles, claro.

As explicações da distribuidora Lusomundo, simpaticamente representada por Nuno Gonçalves e Isabel Lima, serviram para relançar o debate (foram as primeiras a ser ouvidas). Por se ter tratado de conversa informal, via telefone, assinalo de memória os tópicos: ao contrário do que escrevi, Coraline não é a primeira animação a estrear em Portugal sem qualquer versão original (ainda não sei qual foi, mas tentarei descobrir).

A opção de apenas estrear versões de Coraline dobradas, segundo a Lusomundo, tem mais a ver com política financeira que opção ideológica, uma vez que a distribuição de uma versão original 3D implicaria um acréscimo substancial no orçamento previsto para o lançamento do filme em Portugal.

A Lusomundo confirma ainda o contacto recebido pela CCE no interesse de reanalisar o estatuto e classificação de Coraline e a Porta Secreta, mas reconhece a sua incapacidade para alterar essa classificação sem a CCE. Chegarão a tempo? Eu creio que não. Mas antes tarde do que nunca. Até porque depois do cinema vem o DVD. E quando o filme entrar em casa dos pais dessas crianças, que pais serão esses: os genuínos ou os alternativos, com botões nos olhos?

sexta-feira, 13 de março de 2009

Os Espectáculos


Aguardo ansiosamente a resposta para uma questão que deixei colocada por email no site da Comissão de Classificação de Espectáculos (CCE), a entidade do Ministério da Cultura que supostamente “classifica” os espectáculos em exibição no país. Classifica como? Determinando, entre outras coisas, que grupos etários estão autorizados a assistir aos filmes em estreia semanal.

Lembram-se de antigamente ser vetada a entrada a quem quisesse assistir a um filme para “maiores de 18”? Isso era antigamente, agora as “idades” já não têm idade. Onde foi que se perdeu a noção da realidade? Pode ter sido no dia em que decidimos tratar as crianças como adultos. De certeza que foi na altura em que passámos a tratar os nossos filhos como consumidores.

Acontece que um dos espectáculos recentemente estreados, o filme Coraline e a Porta Secreta, de Henry Selick, recebeu da CCE o suspeito estatuto de “filme para maiores de 4 anos”. A pergunta que enviei para o site questionava sobre “os critérios utilizados pela CCE para estabelecer a classificação etária dos filmes de animação estreados em Portugal, e de que forma essa classificação é assegurada nas salas de cinema”.

O que quis saber é se a CCE tem um polícia a impedir uma criança de 3 anos de entrar num filme para maiores de 4 ou se existe alguém no cinema que peça o bilhete de identidade a um puto charila de 5 anos que queira ver o novo filme em que a Sharon Stone faz sexo oral a um polícia (não se assustem, sou eu a divagar).

O que se passa? Passa-se que Coraline e a Porta Secreta não é um filme para crianças – quanto mais será para pré-adolescentes. Passa-se que os pais estarão a ser iludidos por uma classificação falaciosa se decidem levar tranquilamente uma criança de 5 anos a ver Coraline.

Passa-se que os pais não percebem o que se passa quando os seus filhos acordam a meio da noite com pesadelos protagonizados por pais alternativos e adultos com botões nos olhos (a culpa é do argumento de Neil Gaiman que Nuno Markl adaptou).

Passa-se que ninguém sabe que isto se passa por aí, uma vez que os críticos (eu incluído) continuam mais interessados em discutir a ideologia de Quem Quer Ser Bilionário. Passa-se que a CCE não responde aos mails dos jornalistas, que os cinemas não restringem públicos nem idades e que o espectáculo deve sempre continuar.

Há aqui outro dado que ajuda à perversão do espectáculo em si, que é o facto de, creio que pela primeira vez, um filme de animação estrear em Portugal apenas com versões dobradas. Ao excluir qualquer versão original, a distribuidora Lusomundo está a informar o público que o filme é “apenas” para crianças.

Excluíndo os adultos por defeito não resolve o problema: os adultos mais bem informados irão ver a versão original pirateada na internet. Os pais menos bem informados continuarão a acreditar nas classificações idóneas da CCE e no coelhinho da Páscoa.
(Publicado no jornal METRO de 13 Março 2009)

sexta-feira, 6 de março de 2009

Inverno está out


O facto de apenas faltarem 15 dias para a Primavera não significa que faltem 15 dias para a acabar o Inverno. Por isso gostaria de saber se alguém se pode dignar a acabar com ele por mim.

Comer beber homem mulher


Um amigo meu, que tem muitas namoradas (ou apenas uma namorada e muitas concubinas, ainda não percebi bem), telefona-me regularmente de casa a pedir novos restaurantes onde possa levar as namoradas e as concubinas (preferivelmente para mesas e contas separadas). “Olá Miguel, esta semana estou com uma namorada enóloga e queria jantar num restaurante com uma boa carta de vinhos. Sabes de algum?”.

Como ele vive em Oeiras e conduz mal e porcamente, eu tento sempre enviá-lo para um restaurante onde ele se possa deslocar de automóvel - em linha recta. Portanto será sempre mais complicado sugerir que ele vá ao fantástico 2780 Taberna, em Oeiras, porque até lá chegar (a Taberna é a 500 metros de casa) ele teria de enfrentar um quarteirão de sentidos proibidos e sinais de stop.

Sendo assim, para ninguém correr riscos, a sua linha recta Oeiras-Lisboa acaba invariavelmente na Praça da Ribeira, onde estão três excelentesrestaurantes – o tailandês Yasmin, o sul-americano La Moneda e o recente Sommer (cozinha internacional feita por um casal de portugueses). Parece que o Sommer foi mesmo boa aposta: a enóloga gostou dos vinhos, o meu amigo gostou do caminho mais curto entre dois pontos. São assim os atalhos do amor.

No fim de semana passado, para fugir à rotina geométrica dos afectos (grande frase), mandei o meu amigo para o Bocca, que fica na Rodrigo da Fonseca, em Lisboa. O Bocca foi o melhor restaurante onde jantei em 2008, mas isso não sensibilizou o pobre comensal, que pagou cerca de 200 euros por uma refeição de casal que incluía “uns fios de pato que mais pareciam cabelos, com uma bola de algodão doce”. Consta que acabaram os dois a cear no McDonald’s da Brancaamp.

Desde que jantei no Bocca, no Verão passado, não voltei a testar o restaurante, mas custa-me a acreditar que seja preciso acamar uma refeição de 200 euros com uns hamburgeres de 1 euro na esquina. Gostaria que este texto não dissuadisse os leitores de experimentar a cozinha superlativa de Alexandre Silva, um dos melhores chéfs nacionais com menos de 30 anos. Mas posso estar enganado.

É que desde o Verão 2008 até hoje, tudo mudou: a crise veio para jantar e pediu sobremesa. Só em Lisboa, fechou o Omnia, o Vírgula e, segundo consta, saiu o chéf Fausto Airoldi do Pragma Casino Lisboa. Há mais: Miguel Castro e Silva abandonou o projecto impessoal do Bull & Bear no Porto e o sérvio Ljubomir Stanisic fechou o 100 Maneiras em Cascais para o reabrir (com mesmo nome) no antigo espaço do Olivier, no Bairro Alto. Fui com o meu amigo Rui Tendinha, no dia dos namorados (somos ambos do contra) e gostei – mas com algumas reservas. Terei um dia de voltar ao 100 Maneiras para experimentar uma refeição normal sem pétalas de rosa na mesa. É que o amor tende a estragar o apetite que se exige para a grande aventura celibatária do bem-comer.

(Publicado no Jornal Metro de 5 Março 2009)