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O Bom Natal
Eu ainda sou do tempo em que o Natal era pacífico. Agora, o Natal é uma intifada – contra o tempo, contra o espaço e contra a senhora que se arroga ao direito de furar a fila para pedir papel de embrulho no balcão do supermercado. “Tragam ouro e incenso, irra!”. Por isso, este ano, como todos os anos, desde o ano em que o Natal deixou de ser pacífico, a única coisa que desejo é que este ano deixem o Natal em paz. Nada de antagonismos pronunciados ou fanatismos férreos, por favor, que isto não é o referendo ao aborto. Fiquem pelo meio, deixem o Natal ser como é suposto ser – natalício. A ideia é renascer e não morrer na praia.
Mas não adianta: não é possível ser-se absolutamente normal no Natal, porque o Natal não é uma época normal. O Natal é como a noite de Santo António elevada ao quadrado (ou ao rectângulo do país). É uma festa em que todos somos convidados mas depois ninguém respeita o anfitrião. Ou seja, é um abuso constante e uma má educação sistemática. Resultado: ninguém se diverte, o cunhado discute com a sogra e a programação televisiva piora. Inevitavelmente, toda a gente culpa a televisão ou a sogra. Mas o Natal deveria ser a melhor altura para nos conhecermos – ou então tentar perceber de que material somos feitos. Infelizmente, com o ritmo diabólico das coisas, é preciso muito mais do que boa vontade – é preciso músculo e algumas vitaminas para aguentar uma linda-falua que vem de Outubro. É na rentrée que os treinos no ginásio se deveriam intensificar: “A preparar-se para o Natal, hein?”.
Há uns anos, dois músicos ingleses que ficaram alojados em casa dos meus pais, puseram o dedo na ferida. “Vocês em Portugal também celebram o Natal?”. Creio que Portugal ainda não tinha entrado para a CEE mas parece-me que já tínhamos expulso os mouros da península (só faltavam mesmo estes dois idiotas). No entanto, na sua ignorância insular, eles tinham revelado o essencial: o Natal é aquela altura do ano em que nenhum de nós se lembra de que o nosso vizinho também poderá, sei lá, celebrar o Natal. Claro que o nosso vizinho pode ser ortodoxo. Se for, está cheio de sorte, compra os presentes na altura dos saldos. Mas a realidade é esta: o egoísmo é o pior inimigo do Natal e, tantas vezes, o seu único porta-voz. Que fazer? Retirar a ADSE ao Pai Natal?
Natal é como sexo: é impossível não se gostar. Mas para melhor usufruto, convém fazer bem. Ora, o problema não é do Natal – é do Mau Natal. O Mau Natal é uma malaise de nascença, e agudiza-se numa infância infeliz e desprotegida, acabando por se vingar através de um adulto hostil, amargo e insuportável para jogar à sueca. Se não fomos bons filhos, jamais seremos bons pais de família. E, sem família, não há Natal para ninguém. São ensurdecedores os coros daqueles que me dizem ser o Natal uma hipocrisia. Eu acho que maior hipocrisia é daqueles que vêem o Natal como a maior das hipocrisias. Na verdade, a “hipocrisia” iliba a forretice natalícia e justifica um ano de desperdício imperial. Poupar no Natal para ir às Seychelles em Fevereiro? Um amigo meu, com uma certa razão, comentava recentemente que “o Natal na verdade é o Carnaval”: vestimos máscaras festivas, fazemos figura de bom samaritano e consumimos felicidade instantânea. Espero que ele consiga convencer a entidade patronal da sua causa, para assim o pessoal garantir mais um subsídio para o Carnaval que aí vem. E darmos o subsídio de Natal por bem empregue e não por mal gasto.(publicado no Jornal Metro, Dezembro 2006)
1 comentário:
Quem escreve assim não é canhoto.
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