"Não vai participar à polícia?", perguntou-me a vizinha, enquanto eu limpava com uma pá as migalhas do vidro partido do meu carro, ontem de manhã. "Não vale a pena e só me dá mais trabalho", disse-lhe. O meu carro tinha acabado de ser assaltado à porta de casa, cinco anos depois da primeira vez naquele bairro (São Vicente, perto da Feira da Ladra).
A primeira vez foi na manhã seguinte a ter ido ver As Horas, de Stephen Daldry, com Nicole Kidman e Meryl Streep. O impacto do filme atenuou a ressaca do assalto daquele sábado de manhã. Mas o trabalho de descobrir um serviço que me substituísse um vidro em tão pouco espaço de tempo devolveu-me à realidade. Acabei numa daquelas marcas que, na altura, apenas resolvia este género de problemas (vidros partidos). A mesma marca que agora, segundo me dizem, deixa cartões de visita dentro de carros assaltados (isto é mesmo verdade).
Tal como há cinco anos, este assalto deixa-me indiferente - ma non troppo. Deixar que ele me desequilibre um dia de vida, sendo a minha vida naturalmente tão desequilibrada, é ceder facilmente à tentação da histeria e vitimização. Não tenho paciência. Recuso-me a sofrer por um auto-rádio ou dois ou três discos originais (as cópias ficaram todas por ali). A maior violência psicológica, como agora tanto se diz, foi ver a roupa do meu bebé no chão da rua, caída do porta-bagagens (e ainda por cima chovia). Mas nada que não se resolva.
O que aprendi: nunca deixar nada de valioso dentro do carro. Mais: nunca deixar nada de emocional dentro do carro. Se me tivessem levado a cadeira de bebé (não levaram), custava-me imenso. Essencial: garantir que em vésperas de Feira da Ladra (terças e sábados), nada no carro possa chamar a atenção da cobiça. Já pensei em deixar uma casca de banana em cima do meu carro, para dissuadir os bandidos. Alguém assalta um carro que apresente uma casca de banana no tejadilho?