segunda-feira, 22 de setembro de 2008

A Ocorrência


Na SIC Notícias, o jornalista Mário Crespo anuncia: “Vai haver condições favoráveis à ocorrência de aguaceiros”. Se eu fosse um estrangeiro a viver em Portugal, ou um “bife” a tentar aprender português, não iria nunca compreender o significado do oráculo de Mário Crespo. Não sendo estrangeiro, compreendo que esta é a única forma de ele dizer o que precisa de ser dito. Mas, na verdade, Mário Crespo está apenas a “desdizer”, a recuar na proclamação, anular uma fatalidade. Sobrepôr o bendito (o sol) sobre o maldito (a chuva).

Esta forma de narrativa diária com leve inspiração jornalística – o acto do “desdiz que disse” - limita-se a anunciar, ou a ocultar, as más notícias da forma mais pomposa possível. Vai chover? Que chatice, não digam nada às crianças. Deixem lá o Mário Crespo segredar algo sobre as “condições favoráveis à ocorrência de aguaceiros” e não se fala mais nisso. É como dizer que o Verão morreu de “doença prolongada”. O problema é esse: a doença prolongada do Verão chama-se vida.

Alguém se lembra de como tudo começou? Claro que não. A ideia é esquecer, “desdizer”. Mas para isso precisamos de alguém que nos “des-diga” (o Mário Crespo). Ou de alguém que nos descreva (qualquer um, desde que tenha uma memória que sobreviva à ressaca do Verão). Alguém se lembra dos jornalistas sumariamente despedidos do Primeiro de Janeiro? E da libertação de Ingrid Betancourt? Parece que foi o ano passado. Do fracasso da selecção no Euro 2008? Do assalto ao BES, com vítimas? Deixou de se falar. E o directo de Cavaco Silva sobre o estatuto dos Açores às 20h00 nos três noticiários? A Quinta da Fonte, apagar-se-á do mapa, como se fosse o genérico inicial da antiga série de cowboys Bonanza, lembram-se?

Um milagre: este ano Portugal não ardeu. Mas agora que o Verão chega ao fim (o Equinócio de Outono é na 2ª feira às 16h44), será útil executar sem cerimónia uma política de terra queimada sobre os grandes “debates” do estio. Exemplo? As suspeitas na acidentada linha ferroviária do Tua, a estranha calendarização na “oferta” da Casa dos Bicos à Fundação José Saramago, ou o mais genuíno “desdiz-que-disse” do Verão, o de Vicente Moura, que em 48 horas se demitiu e recandidatou à presidência do Comité Olímpico de Portugal. Debates? É apagá-los da memória, com terebentina, água oxigenada ou chuva. Porque hoje, sexta feira, se tudo correr como esperado, estarão garantidas as condições favoráveis à ocorrência de aguaceiros. Debates? Quanto mais debates mais eu gosto de ti.


(Crónica do Metro de 19 Setembro 2008)

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